quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

Após boicote a festival, artistas dizem que mercado de HQs ainda é machista Comente

Da esq. para a dir., as quadrinistas Lu Caffagi, Fefê Torquato e Cris Peter
Da esq. para a dir., as quadrinistas Lu Caffagi, Fefê Torquato e Cris Peter

Principal evento de quadrinhos do mundo, o Festival de Angoulême, que acontece no final do mês na França, viu-se em meio a uma polêmica no começo deste janeiro, quando autores respeitados pediram para ter seus nomes retirados da lista dos 30 finalistas ao Grande Prêmio da festa, porque nenhuma mulher estava na relação.

Ao menos dez quadrinistas, entre eles artistas do quilate de Milo Manara e Riad Sattouf, aderiram ao boicote pela igualdade de gêneros nos quadrinhos, escancarando que há muito a ser feito para que se rompa com o arcaico machismo que ainda permeia as HQs.

Machismo, claro, que não é exclusividade da França ou de Angoulême. Ouvidas pelo UOL, quadrinistas brasileiras afirmaram que, por aqui, o espaço para as mulheres no setor ainda é muito menor do que o dos homens.

"O quadrinho, como uma produção cultural, é reflexo do mundo que o envolve, então é um meio machista, sim. Ainda há muitas revisões históricas a serem feitas, muitas autoras que foram esquecidas, e temos que estar atentos para impedir que isso continue acontecendo. O meio é hostil para as autoras, pela forma como seu trabalho é percebido por alguns leitores e alguns críticos especializados, e pela forma como elas mesmas são recebidas por essas pessoas", diz Lu Caffagi, autora de "Turma da Mônica - Laços", "Tuma da Mônica - Lições" e "Quando Tudo Começou", entre outros.

Cris Peter, de "Pétalas", segue discurso semelhante. Depois de salientar que o machismo não é exclusividade do mercado de quadrinhos, mas algo cultural, lembra que desde criança as "meninas leem livros de fábulas, meninos leem quadrinhos. E é aí que tudo começa. Quanto mais leitores meninos de quadrinhos, mais homens se interessam pelo meio e, consequentemente, pela profissão. Por várias circunstâncias, acontece de muitas meninas desafiarem esse padrão, e por essas e outras eu estou no mercado como profissional", explica.

Já Fefê Torquato, de "Gata Garota", lembra que em veículos tradicionais, como jornais, revistas e livros de editoras, ainda se publicam muito mais homens do que mulheres, apesar da grande quantidade de autoras que há no mercado atualmente. Essas quadrinistas encontram espaço para mostrar seus trabalhos principalmente na internet e em publicações independentes e, pela força que muitas vezes conquistam, acabam chamando atenção justamente dos meios já estabelecidos.

No entanto, segundo Fefê, "simplesmente não acontece" de algum veículo "contratar uma quadrinista para publicar charges ou tiras, por exemplo, sem que ela faça parte de uma página específica para mulheres que pode ser descartada a qualquer momento". Além disso, "premiações, como aconteceu no caso da HQMix, que teve uma pequeníssima porcentagem de mulheres indicadas, também não fogem desse preconceito. Assim como os próprios cartunistas e quadrinistas confortavelmente estabelecidos, não apenas no mercado mas na sociedade, que se recusam a ceder espaço nesse pódio que já não os pertence há algum tempo. Sim, os quadrinhos, assim como muitos outros segmentos do mundo 'nerd', assim como toda a nossa sociedade, é ainda muito, muito machista", conclui.

A única das quadrinistas ouvidas que parece ter um olhar um pouco diferente sobre a questão é Alexandra Moraes, autora de "O Pintinho". Para ela, "essa 'luta contra o machismo nos quadrinhos' às vezes parece tomar mais espaço que os próprios trabalhos das mulheres", diz. "Talvez só pareça mesmo, não sei".
Leia a seguir a experiências de três artistas:


Victor de Andrade Lopes (CC BY-SA 4.0) e Reprodução


Lu Caffagi: Trabalho, não aparência
Ao ser questionada se já sofreu pessoalmente com esse machismo, Lu contou que sempre respondia "não", mas que mudou a resposta após refletir a respeito de alguns casos e hoje diz que já foi sim desrespeitada por ser mulher, a começar por autores e leitores que se sentem à vontade para lhe passar cantadas ou tratar a ela e outras quadrinistas com uma intimidade claramente forçada. "Isso acontece em eventos de quadrinhos e lançamentos, lugares aos quais a gente vai para apresentar, vender e conversar sobre nosso trabalho, não para fazer pesquisa de opinião a respeito da nossa aparência".

Recordando seu primeiro lançamento, a autora conta que muitos homens compravam um exemplar da obra e se "justificavam" dizendo que iria dar para a namorada, por exemplo. "Isso me fez pensar por um tempo e concluí que o moço partia do pressuposto de que um quadrinho feito por uma mulher só poderia ser interessante para outra mulher. Ao contrário dos quadrinhos feitos por homens, que são leituras universais".

Reprodução/Youtube e Reprodução

Fefê Torquato: Machismo dos supostos intelectuais
"O machismo dentro dessa área é extremamente traiçoeiro", acredita  Fefê. "Porque envolve pessoas tidas como intelectuais e esclarecidas, além de armas sutis e sofisticadas, como o humor", conta ela, que confronta a questão sempre que se questiona se deve ou não usar determinada cor ao ilustrar uma história porque corre o risco de deixá-la muito "'feminina' e, portanto, menos digna de crédito".

A autora de "Gata Garota" ainda elenca uma série de situações do mercado pelas quais passa por ser mulher. "Eu sofro com o machismo quando eu perco metade do meu público com antecedência por conta do título da minha HQ, que é muito 'mulherzinha'; quando leitores homens vêm surpresos elogiar a qualidade do meu traço e da minha história, aparentemente uma coisa surpreendente; quando o meu trabalho é ignorado por meios de divulgação especializados, que contém menos de 10% de autoras mulheres em suas indicações", conta. "É muito difUOL ícil lutar contra uma intenção. E quando uma mulher tenta, ela é chamada de paranoica".

Para ela, a forma de batalhar contra tudo isso é justamente continuar fazendo seus quadrinhos. "E é o que muitas mulheres têm feito e que tem dado resultado, cada uma na sua área, trabalhando e seguindo em frente e tentando dessa forma puxar pela mão mais garotas e gerações de meninas para seguir conosco. Eventualmente serão tantas, afinal nós somos mais da metade da população mundial, que ignorar não será mais uma escolha", confia.

Reprodução/Facebook e Reprodução

Cris Peter: Preocupação com o público
Cris sente que muitas vezes tem sua existência profissional ignorada, por raramente ser convidada para participar de eventos, premiações ou projetos – logo ela, coautora do maior financiamento coletivo da história da categoria no país, que levantou mais de R$ 55 mil. "Sinto uma amizade muito forte entre os profissionais homens, eles lembram muito mais deles mesmos e muitas vezes não pensam em nós com a mesma admiração. É a famosa 'broderagem' da qual normalmente as profissionais mulheres não fazem parte", diz.

A maneira que encontra para contornar essa situação é utilizar as mídias sociais para se promover e estar em contato com aqueles que são a razão do seu ofício. "Dessa maneira, conseguimos reunir um grupo de pessoas que realmente admira seu trabalho e que acaba cobrando sua presença. Nosso trabalho é importante, mas nunca podemos esquecer de para quem estamos realmente o mostrando. O editor? Sim. Mas mais importante do que ele é o público".

Além disso, Cris conta que já foi assediada algumas vezes ("nunca pelos meus colegas"), mas que aprendeu a lidar com isso de maneira que a situação não se repetisse novamente.

O espaço que elas ocupam nas HQs
Para fechar a conta, as entrevistadas também disseram qual, ao seu ver, é o papel que as mulheres ocupam atualmente no mercado e na produção de HQs. "O da periferia, a maioria que é chamada de minoria", crava Fefê.
Já para Cris "ainda é um espaço pequeno, mas cada vez mais vejo as profissionais se reunindo e mostrando seu trabalho. Sinto muito orgulho de estar aqui para ver e viver isso. A internet foi a grande aliada. Sempre nos sentimos sozinhas e isoladas, agora através da internet nos encontramos e nosso volume vai ficar cada vez mais alto. Não existe volta".

Por fim, Lu lembra que essa luta feminina não se limita aos quadrinhos. "As mulheres estão buscando desconstruir essa desigualdade em diversas frentes. Nas histórias que produzimos, nas discussões que promovemos (nas redes sociais, nos eventos e no dia a dia) e, à medida que o mundo começa a assimilar melhor a diversidade, ficamos mais atentas a tudo que acontece na mídia e ao nosso redor".

Caminhos necessários para que, por exemplo, premiações de grande prestígio –e mesmo as que não têm tanto prestígio assim– olhem para todos os artistas da mesma maneira, não de acordo com o nome ou o gênero de cada um.

Por Rodrigo Casarin - UOL

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